A indústria calçadista vem experimentando uma fase de recuperação na atividade. Com crescimento de 9,8% na produção de calçados em 2021, dado que foi impulsionado pela exportação, que cresceu mais de 30%, o setor vislumbra a continuidade da recuperação em 2022. A expectativa da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) é de um crescimento produtivo entre 1,8% e 2,7%, para mais de 820 milhões de pares produzidos.
O presidente-executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira, destaca que o crescimento poderia ser ainda maior, caso existissem melhores condições de competitividade, especialmente no que diz respeito à redução de custos tributários, melhorias mais profundas na legislação trabalhista, melhores condições logísticas, entre outros pontos que fazem parte do chamado Custo Brasil. “Hoje, o custo produtivo no País ultrapassa R$ 1,5 trilhão por ano, o que representa 6% do PIB. Apesar de alguns avanços nos últimos anos, especialmente no que diz respeito à desburocratização, existe um longo caminho a ser trilhado”, comenta o executivo.
Somam-se aos problemas relacionados aos custos produtivos a oscilação cambial, a quebra do fluxo da cadeia produtiva global em função da pandemia de Covid-19, que encareceu fretes e o preço de insumos, e dificuldades de contratação de mão de obra em um momento de reaquecimento do mercado.
Oscilação cambial
Para o empresário Giuliano Gera, diretor da PG4 Galleria, de Franca/ SP, a instabilidade cambial é “a mãe dos problemas” no que diz respeito à competitividade, tanto no mercado doméstico quanto internacional. Atualmente, a empresa exporta entre 55% e 60% de sua produção de mais de mil pares de calçados masculinos e importa cerca de 5% dos insumos utilizados na fabricação, isso fora a importação indireta. “Hoje temos a quinta maior indústria de calçados do mundo. Se tivéssemos mais estabilidade, certamente estaríamos muito à frente. A oscilação cambial tirou do nosso cluster a possibilidade de alçar voos maiores, de poder reinvestir em tecnologia e produtividade. A variação impede a criação de um bom ambiente de negócios”, avalia.
Além da questão cambial, Giuliano destaca os constantes aumentos de custos de matérias-primas, efeito direto da quebra de fluxo de abastecimento em nível global, e a inflação persistente no mercado interno, que vem minando o poder de compra do consumidor. “No meu ponto de vista, também existe um equívoco na condução da política de juros. Não existe uma inflação por demanda, mas o Banco Central aumenta os juros. Acabam piorando as condições de investimento e ainda aumentando o endividamento do consumidor”, comenta o empresário.
A dificuldade na contratação de mão de obra é outro desafio do setor calçadista, segundo Giuliano. “Esse problema vem aumentando nos últimos cinco anos. Não é de hoje. Penso que a solução seria um resgate do prestígio da atividade. O jovem não quer mais trabalhar com calçados. Temos um curso excelente na área do Senai de Franca que não consegue preencher as vagas existentes”, pontua, ressaltando que o problema ficou ainda mais evidenciado no momento de retomada da atividade pós Covid-19.
Sustentabilidade
Vice-presidente e diretora de Desenvolvimento de Produtos de uma das maiores fabricantes de calçados do Brasil, a Piccadilly, Ana Carolina Grings, destaca que a principal dificuldade do setor está, hoje, na volatilidade cambial. Segundo ela, renegociações de preço em função da oscilação da cotação do dólar são comuns, mas fazem com que a empresa tenha dificuldades no mercado internacional. “Já tivemos situações de uma diferença de 30% entre o preço negociado e o embarcado. Por isso, temos trabalhado com trava cambial, mas sempre existe um risco para ambos os lados”, avalia, ressaltando que a companhia também trabalha com adiantamento na compra de matéria-prima visando a ficar menos suscetível às oscilações do câmbio.
Para diminuir os efeitos dos aumentos dos custos com matéria-prima, Ana Carolina conta que a empresa vem buscando modelagens mais inteligentes, que usam menos materiais e reduzem o desperdício, que é outro dos pontos de atenção da marca. “Temos uma ligação muito forte com sustentabilidade, não só no produto, mas dentro dos conceitos de ESG. No campo ambiental, no ano passado reaproveitamos 21 toneladas de insumos que se tornaram novas palmilhas, solados e contrafortes”, diz a executiva, acrescentando que a marca vem investindo em marketing e comunicação para que essa informação chegue de fato ao mercado final.
Com mais de 1,7 mil colaboradores que produzem 6 milhões de pares de calçados todos os anos em três unidades fabris (Igrejinha, Rolante e Teutônia, no Rio Grande do Sul), a Piccadilly vem sentindo dificuldades para a contratação de mão de obra diante de um mercado aquecido. Ana Carolina comenta que, na ocasião da crise em função da pandemia de Covid-19, muitas empresas fecharam unidades ou precisaram reduzir a mão de obra. “As pessoas migraram para outros setores. O nosso desafio é trazer de volta. O mercado está aquecido, tem demanda, mas estamos com essa dificuldade’, avalia a executiva, acrescentando que, para incrementar a produção, a Piccadilly vem buscando estabelecer parcerias via terceirização, com os atelieres.
Nova geração na indústria
Com uma produção de 640 mil pares de calçados e 160 mil bolsas por ano, a Luiza Barcelos, de Belo Horizonte/MG, é uma das principais marcas de moda do setor no País. O diretor da empresa, Luiz Barcelos, destaca que a marca vive “um momento ímpar”. Depois de dobrar o faturamento em 2021, em relação a 2020, a empresa segue crescendo no ano corrente, tanto que o empresário revela que está buscando uma nova planta produtiva pronta para incrementar ainda mais a produção da Luiza Barcelos. “Devemos encerrar 2022 com crescimento de 60% a 70% em relação a 2021”, diz. Neste contexto, Luiz pontua um “problema bom”, que é a busca por mão de obra. “Nas unidades atuais já estamos com espaço limitado para ampliar a produção. No início do ano precisamos contratar para a unidade de Belo Horizonte, o que só foi possível por meio de uma parceria para formação de menores aprendizes junto à Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg). Hoje a nossa mão de obra está envelhecida, a geração atual não quer mais trabalhar com calçado, quer tecnologia. Trata-se de um grande desafio estimular essa geração e fazemos esse trabalho internamente com os atuais funcionários, para que estimulem seus filhos”, conta.
Com duas unidades produtivas, em Belo Horizonte e Campo Bom/RS, Luiz conta que serão gerados mais 50 a 70 postos com a abertura de uma outra unidade, possivelmente no Rio Grande do Sul. “Ficamos contentes por termos bons desafios pela frente. São problemas bons, que tem solução. Pior seria se tivéssemos que ir atrás da demanda’, conclui.
Alta de custos
Para o empresário Diego Colli, CEO da Pampili, o problema da oscilação cambial se soma, neste momento, ao aumento dos custos de matérias-primas provocados pelos impactos provocados pela Covid-19 na cadeia de fornecimento global. Segundo ele, o câmbio atual, embora favoreça a rentabilidade da exportação, acaba influenciando do outro lado, na importação de insumos. “Hoje, quando o dólar aumenta, o fornecedor internacional aumenta seu preço. Quando cai, não baixa”, lamenta. A saída da fabricante de calçados infantis tem sido a formação de parcerias sólidas com fornecedores nacionais. “Hoje, 95% dos nossos fornecedores de matérias-primas são nacionais”, conta, ressaltando que esse número era 90% até o ano passado. Mesmo assim, existe a importação indireta, que acaba impactando no aumento dos custos com insumos.
Diego diz, ainda, que além da questão macroeconômica da oscilação cambial e do aumento dos custos, a indústria calçadista convive com o desafio interno de melhorar a produtividade, estabelecer novos canais de vendas e realizar - e comunicar - práticas produtivas que estejam de acordo com os conceitos de ESG. “Estamos tornando o canal omni cada vez mais relevante para os negócios, além de investir nas franquias. Até o final do ano, devemos lançar três lojas e realizar uma expansão mais forte a partir de 2023”, antecipa.
Outro ponto de atenção da Pampili, segundo Diego, é a sustentabilidade. “Estamos em processo de certificação no Origem Sustentável e até o final do ano queremos ter esse selo. É parte importante da nossa estratégia, que está sempre de acordo com o propósito de contar histórias verdadeiras e de cuidado com as pessoas e com o meio ambiente”, diz, ressaltando que a sustentabilidade, há muitos anos, é uma realidade na Pampili, mas que agora esses processos serão estruturados para contar ao público final.
Com uma produção de 15 mil pares por dia, a Pampilli emprega 1,8 mil pessoas em duas unidades, em Birigui/SP e Paranaíba/MS, e vem trabalhando para formação de mão de obra própria. “Estamos inaugurando uma fábrica-modelo no segundo semestre, onde iremos treinar mão de obra para a empresa”, adianta Diego Colli.
Mão de obra
O fundador do Grupo Suzana Santos e presidente do Sindicato das Indústrias de Calçados de São João Batista (Sincasjb), em Santa Catarina, Almir dos Santos, recorda que o polo local, hoje com 490 indústrias de calçados, nasceu em meados da década de 1980, com o fechamento de uma usina de açúcar que empregava boa parte da mão de obra da região. Eram três mil funcionários que ficaram desempregados. Como eram qualificados, ficaram na região e logo iniciaram um novo negócio, agora no calçado. Não havia problema de mão de obra. “Eu mesmo era um funcionário dessa indústria”, recorda. A partir da década de 1990, então, o polo calçadista passou a se desenvolver na cidade, atraindo trabalhadores não somente de Santa Catarina.
Em 2001, quando assumiu pela primeira vez a presidência do sindicato calçadista local, Almir conta que criou as primeiras feiras do segmento na cidade, uma de calçados e outra de fornecedores para os calçadistas, aproveitando o bom momento do setor na região “Hoje somos um polo autossuficiente e que envia calçados e insumos para várias partes do Brasil e do mundo”, comenta. Segundo ele, apesar de relativamente jovem, o polo calçadista já enfrenta problemas observados em outros grandes polos do País. Uma dificuldade importante, que não era sentida anos atrás, dá às caras. Existe demanda, existem vagas e não existe mão de obra suficiente para a produção.
“Estamos trabalhando, junto ao Senai, para a formação de trabalhadores para a indústria e junto ao Poder Público para atrair as pessoas para a nossa região”, revela. Além da questão da mão de obra, Almir destaca que outro desafio do setor tem sido os altos custos com matérias-primas, que aumentaram diante da quebra de fluxo comercial provocada pela pandemia de Covid-19 e que hoje enfrenta as oscilações com a guerra na Ucrânia e o câmbio.
Na pauta atual da indústria local, Almir destaca a reivindicação de incentivos fiscais aos produtores de componentes para calçados, aos moldes dos já existentes para as indústrias calçadistas do Estado. Segundo ele, essa é uma pauta antiga do Sincasjb, que luta para tornar o polo calçadista mais competitivo. Desde 2019, as empresas de componentes destacam 12% do ICMS para vendas dentro de Santa Catarina, invés de 17%. “Mas, precisamos de uma redução maior, por isso solicitamos um crédito presumido para igualar a competitividade com estados que já possuem esse tipo de incentivo”, explica.
Como uma instituição voltada para a oferta de soluções que fomentem o desenvolvimento da indústria brasileira pelo valor agregado aos produtos, o Instituto Brasileiro de Tecnologia do Couro, Calçado e Artefatos (IBTeC) acredita que hoje as exportações se tornaram a grande oportunidade para o setor coureiro-calçadista retomar o protagonismo entre os maiores produtores de calçados no mundo.
“Com o câmbio favorável como está, o Brasil pode, sim, calçar o mundo. Temos produto, mercado e uma série de competências em termos de inovação e tecnologia, que são expertises das indústrias nacionais, mas também do próprio IBTeC que, na busca de instrumentalizar as empresas, está trabalhando para duplicar a capacidade instalada no seu laboratório de substâncias restritas, que é uma das principais barreiras para que as empresas acessem mercados”, contextualiza Paulo.
Ele complementa que o IBTeC, desde a sua criação há 50 anos, está ao lado das empresas para que elas possam estar atualizadas em suas tecnologias e ocupar espaços ainda maiores no mercado internacional de calçados e, para isso, o instituto prima pela excelência no que faz, sendo referência tanto na prestação de serviços quanto nas pesquisas em conforto, sustentabilidade, inovação e tecnologia.